Vocês acham que acabou?

Trabalhadores denunciam ameaças de morte e desaparecimentos na Serra Gaúcha

Intimidação continua mesmo após o resgate e trabalhadores encontrados em condições análogas à escravidão são fotografados e vigiados por capangas ao falarem com jornalistas

Os problemas trabalhistas já identificados na indústria do vinho da Serra Gaúcha, no Rio Grande do Sul, são apenas a ponta do iceberg dos casos de trabalho análogo à escravidão na região, uma das mais turísticas do Brasil. Headline ouviu em Bento Gonçalves (RS) denúncias de ameaças de morte, tentativas de assassinatos e até de desaparecimentos de trabalhadores, além de perseguição de "capitães do mato" no Rio Grande do Sul e na região de Feira de Santana, na Bahia. A reportagem também apurou que três trabalhadores baianos hospedados no alojamento teriam morrido em circunstâncias jamais apuradas a fundo pela polícia local.

Segundo trabalhadores ouvidos pela reportagem de Headline na cidade e em Feira de Santana haveria ainda tráfico humano e corrupção de agentes públicos, em uma rede de ilegalidades cuja extensão ainda está sendo investigada pelas autoridades.

Nos testemunhos, salta aos olhos a indiferença de grandes empresas e autoridades às advertências feitas repetidamente pelos próprios moradores da cidade, alarmados pela constante chegada de trabalhadores da Bahia, pela situação de precariedade e exploração, e pelo caos gerado por traficantes de pessoas no bairro popular de Borgo.

Por pelo menos sete anos – tempo de existência dos alojamentos –, grandes empresas brasileiras tiraram proveito, de forma direta ou indireta, de trabalho análogo à escravidão em Bento Gonçalves e região. Mesmo diante de repetidas denúncias de moradores e ONGs, que estão sob investigação da Secretaria de Justiça e Segurança Pública do Rio Grande do Sul, agentes da Polícia Militar, da Polícia Civil, do Corpo de Bombeiros e da prefeitura ignoraram irregularidades de toda ordem em alojamentos – como falta de alvarás de funcionamento, condições sanitárias e normas de lotação e segurança anti-incêndio. E, sobretudo, ignoraram casos de ameaças, torturas, perseguição, opressão e exploração de trabalhadores – quase todos negros.
Sujos, úmidos e mal cheirosos, alguns quartos do alojamento onde foram resgatados os trabalhadores não tinham nem janelas. Foto: Daniel Marenco/HDLN

Além da suspeita de conivência das autoridades – investigada por ordem do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite –, chama atenção a atmosfera de intimidação e violência, que persistiu mesmo após a intervenção policial da quarta-feira, 22 de fevereiro. Uma semana depois, em 1º de março, vários trabalhadores ainda tinham medo de falar, diante da presença de capangas das empresas que controlam o que é dito e feito na casa. Um dos intimidados decidiu aproveitar uma oportunidade para falar quando esteve sozinho com a reportagem.

"Rapidinho: eu encerrei e não quero saber de trabalhar mais. Sou capaz até de matar um, porque não quero mais trabalhar aqui", disse Fernando, que preferiu não dar seu sobrenome, por medo de represálias. "Eu trabalhei o mês passado, trabalhei este mês e não recebi nada até agora", completou, referindo-se aos meses de janeiro e fevereiro.

Segundo José Janderson Carneiro de Araújo, 32 anos, trabalhador de colheiras de uva e de frigoríficos, só com a intervenção do Ministério Público do Trabalho foi possível revelar a violência. Antes, diz ele, era impossível, em função das ameaças. "Agora parou. Mas você sabe o que faziam? Um policial encostava em você com uma arma."

Ordem de assassinato
A intimidação e a violência foram método corrente para manter a exploração, segundo os trabalhadores. Com a ajuda da Polícia Rodoviária Federal (PRF), que participou da ação de resgate, Headline localizou na Bahia o primeiro trabalhador a fugir na semana passada – atitude que desencadeou a operação policial.

Pedindo sigilo de seu nome, por temer a ação de capangas na Bahia – liderados por dois homens, "Daniel" e "Chapéu de Couro" –, o trabalhador de 33 anos contou ter sido torturado por mais de uma hora e meia, inclusive com uso de spray de pimenta e choques elétricos, até, segundo ele, ter ouvido a ordem do dono da empresa que contratava os trabalhadores, Pedro Augusto de Oliveira Santana a seus capangas para que o matassem.

"Um deles, o 'Escocês', atendeu o celular. Era ligação de Pedro. Pedro dizia: 'Mata esse baiano que acabou com a nossa vida, que acabou com as nossas coisas. Mata, mata, mata agora!'", contou o trabalhador, que relatou ter ficado trancado em uma sala com companheiros, enquanto os capangas buscavam um carro.

Leia o testemunho de tortura e tentativa de homicídio:

"Mata, mata! Mata agora!"
Em testemunho a Headline, primeiro trabalhador a denunciar o trabalho escravo em Bento Gonçalves fala sobre a tentativa de homicídio e tortura que sofreu. Seus algozes estão soltos
Andrei Netto (reportagem) e Daniel Marenco (fotos), da Headline | Bento Gonçalves (RS) — 5 de mar. de 23

Nesse momento, ele e outros três trabalhadores conseguiram fugir, esconder-se em um matagal e pedir ajuda, horas mais tarde, em Caxias do Sul e Porto Alegre, onde foram auxiliados por agentes da Polícia Rodoviária Federal. "Eles mandaram um pedido de socorro por áudio para um amigo deles na Bahia. E esse amigo mandou o número para o telefone de plantão da PRF aqui de Bento Gonçalves", contou um agente da PRF à reportagem. "Quando nós percebemos o tipo de crime que se tratava, e que de fato se configurou, era um crime federal. Acionamos o Ministério do Trabalho e a Polícia Federal e tudo começou."

Denúncias já tornadas públicas por reportagens dos jornais Zero Hora e Pioneiro indicam também a participação de soldados da Brigada Militar – a Polícia Militar gaúcha – na proteção dos empresários responsáveis pelo esquema e na intimidação de trabalhadores. Outras, ouvidas pela reportagem, dão conta da presença de agentes da Polícia Civil como "seguranças" dos empresários, e da indiferença completa de órgãos da prefeitura a respeito dos abusos. A Corregedoria da Brigada Militar abriu investigação. Em condição de anonimato, agentes confirmaram a Headline que há indícios fortes de que houve associação ilegal entre policiais militares e os acusados.

Leia sobre o trabalho em frigoríficos da região:


Trabalho análogo à escravidão na Serra Gaúcha beneficiava também a BRF
Mesmo grupo que sofreu violência e ameaças em Bento Gonçalves não atuava apenas para produtores rurais e vinículas Aurora, Salton e Garibaldi, mas também para frigoríficos na chamada "apanha de frango"
Andrei Netto (reportagem) e Daniel Marenco (fotos), da Headline | Bento Gonçalves (RS) — 5 de mar. de 23

Ameaças e desaparecimentos
Nos testemunhos dos trabalhadores, as denúncias de ameaças de morte e de desaparecimentos de amigos são frequentes. "O Vagner, meu amigo, está desaparecido", contou Araújo. Alguns reaparecem após dias de trabalho, outros somem – supostamente para voltar para casa.

Interditado pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano (IPURB) de Bento Gonçalves por "oferecer risco aos seus habitantes ou ao público em geral" (Artigo 34 da Lei Municipal 06/1996), o alojamento de trabalhadores da rua Fortunato João Rizardo agora passa por reformas. O local onde 207 trabalhadores foram resgatados em situação análoga ao trabalho escravo recebeu colchões novos, pintura nas paredes e higienização dos banheiros. Objetivo: a retomada das atividades o mais rápido possível.

É nesse espírito que funcionários da empresa Fabio Daros Serviço de Hospedagem Ltda, de propriedade do gaúcho Fabio Daros, e Oliveira & Santana – Prestadora De Serviços Ltda, de propriedade do baiano Pedro Santana, trabalham desde a interdição ocorrida após a intervenção policial, que aconteceu entre a quarta-feira, 22, e a sexta, 24 de fevereiro. Os trabalhos são coordenados por "Canário" e "Alan", dois funcionários.

(E/D) O baiano Pedro Santana e o gaúcho Fabio Daros. Foto: Reprodução redes sociais

"Canário", 28 anos, um trabalhador que trocou a Bahia em 2019, onde era "garçom e barman", pelo Rio Grande do Sul, é o organizador da reforma. Ele também defende seus patrões – Pedro Santana, o "Pedro Sadia", e Fabio Daros. Durante a conversa, monitorava e registrava com fotografias as vítimas que por ventura aceitassem falar a jornalistas e controlava outros funcionários, que faziam o mesmo. Vizinhos que têm tido contato com a imprensa e com a polícia também contam estar sendo fotografados pelos funcionários.

Canário é um dos mais exaltados na defesa dos seus patrões e na acusação dos trabalhadores – grupo do qual um dia ele próprio fez parte.

Questionado sobre se é possível falar com Pedro Santana, ele responde: "No momento não". Questionado por quê, afirma: "Não sei. Não sei se ele não está viajando ainda".

"Eu não tenho nada do que reclamar. Eles vieram e fizeram o que quiseram", diz Canário. "Ano passado eu vim, recebi tudo certo. Esse ano ficaram de onda, por causa de uns que não estavam satisfeitos com o trabalho. Se não estavam satisfeitos, era só passar no RH e pedir as contas. Como ele teve o direito de vir, ele tem o direito de ir. Mas aí né... Eles querem fazer o que eles querem..."

Confrontado à versão dos trabalhadores, que informaram às autoridades de que o transporte tinha de ser pago pelo contratante, Canário diz que não. "Nada é pago. É a mesma coisa do ano passado. Eles pagam a passagem de ida e vinda, o alojamento, a janta, o almoço, o café da manhã e o contrato que a gente vem para trabalhar", garante. "É simplesmente assim. Agora eles vão falar o que eles querem. Quem não quer trabalhar 15 dias para ganhar R$ 5 mil? Se fosse desse jeito eu trazia a minha família toda."
Fotos reveladas pelo Ministério do Trabalho, mostra o local onde eram alojados os trabalhadores no momento da operação de resgate: Foto: Divulgação MT


Canário explica que conhece "a maioria" dos que estavam em Bento Gonçalves. "É tudo lá do bairro onde eu moro (na Bahia), a maioria de Feira (de Santana), de Amaralina, Pernambuês, Cajazeiras, de tudo lá", explica. "Eles brigavam uns com os outros. E a gente só fazia separar. O meu papel era separar, não bater em ninguém."

Dívida no mercadinho

O capataz confirma, sem ser questionado a respeito, a existência de um "mercadinho" designado pelos organizadores do alojamento no qual os trabalhadores podiam comprar alimentos. "Tem uns aí que saíram sem pagar. Devem R$ 3 mil, R$ 4 mil à mulher lá em cima, no bar, o bar da Galega, um bar que tem aí", explica.

Quando perguntado se a atividade das empresas seria interrompida, ele diz que não. "Que eu saiba não. Só a gurizada que foi embora", diz Canário. Outro funcionário ao fundo reforça: "Quem quiser vir trabalhar, pode vir trabalhar".

De fato, o que Headline constatou é que, apesar da interdição pela prefeitura e da presença de policiais da Corregedoria da Brigada Militar na área, havia trabalhadores em duas casas mantidas pelas empresas. Na primeira restavam quatro. Na segunda, 24. E havia trabalhadores que estavam em horário de trabalho. No meio da tarde de quarta, 1º, um micro-ônibus chegou a se aproximar da casa. Então trabalhadores apontaram: "É esse aí, ó". O veículo passou lentamente em frente à casa da Rua Fortunato João Rizardo, mas não parou e foi embora.O que dizem as partes envolvidas nas denúncias dos trabalhadores da Serra Gaúcha

Governo do Estado do Rio Grande do Sul, em nome da Brigada Militar, da Polícia Civil e do Corpo de Bombeiros; prefeitura de Bento Gonçalves; advogados de Pedro Santana; e BRF se manifestam.Fábio Daros não respondeu ao pedido de informações. Os demais citados não foram localizados até a publicação das reportagens. Headline segue aberta a novas respostas
Fonte: Headline


Comentários